A Mulher sem braço pós pandemia
Dia de supermercado. Com sacolas pesadas saltei para o caixa, com pressa demais para pegar um carrinho, e correr desesperadamente ao elevador antes que uma horda de pessoas insanas o tomasse à minha frente.
No caixa, ali, logo a minha frente uma mulher, sem o braço. Com visível dificuldade para tirar os itens do carrinho, praguejei mentalmente e depois de súpeto, por culpa, me ofereci para ajudá-la. Ela estava com reais dificuldades de movimentar-se, mas o pior estava por vir. Seu cartão insistiu em recusar a compra. E lá se foram 30 minutos. Ela sem braço, eu sem paciência. O T0 do lapso temporal cruel desta jornada trágica foi eu me oferecer para ajudá-la, o T1 foi o problema no cartão dela. O que aconteceu na sequencia foi uma sucessão de “vergonhosidades”: xingamentos da mulher com o caixa, impaciência, minha e de outras pessoas que se prostravam atras de mim, incapacidade do atendente em lidar com o conflito, enfim a confusão geral estava instalada no caixa 5 do hipermercado. Um conflito exagerado por um motivo comum. Em direito se diria que há um descompasso entre o fato gerador do dano e a reação ao fato, gerando uma discussão sobre justo e injusto. Mas fiquemos por aqui...
Passado o entreveiro, eu com uma bruta sensação de injustiça por ter empregado 30 minutos da minha vida assistindo aquela cena estapafúrdia, refleti por alguns instantes. Porque aquela mulher simplesmente não deu lugar a outras pessoas e foi resolver o seu problema sem ter aquela reação? Um piripaque, um chilique ridículo, um descompasso visível a 20 metros de distância? Que problemas teria “a mulher sem braço” para reagir tão mal a uma coisa tão simples? Seria pelo fato dela ser “diferente”, uma tentativa egóica de justificar a si mesma - e impor aos outros, e porisso mesmo poder ter uma reação anormal sendo compreendida pelo triste fato de não ter o braço? Teria ela outra maneira de resolver o seu problema sem tomar para si, furtivamente, 30 minutos da vida de todos ali atrás dela esperando e assistindo àquela desilusão financeira? Mas será que a mulher, embora lhe faltasse o braço sobrava-lhe correção moral e ego a ponto de achar abominável ser vista como “caloteira”? Fiquei divagando e por fim me dei conta: Porque raios nós, ali ao lado dela, especialmente eu, fiquei tão incomodada com tudo isso? Porque simplesmente não deixei passar...
Eis que surge o senso de emergência e justiça! Em tempos pós-pandêmicos a “mulher sem braço”, tem o direito de ter chilique, e eu (e todos os expectadores do show no caixa 5 do hipermercado), tenho o direito de sentir que me foi raptado “tempo de vida”, injustamente.
Dentre os impactos da pandemia sobre a vida das pessoas, talvez o principal e mais desafiador a longo prazo seja o das doenças mentais. Há pilhas de relatos médicos que atestam o efeito pós pandêmico sobre as crianças que se encontram com déficit de aprendizagem, confusas e psicóticas. Adultos com síndrome disso e daquilo. A mulher sem braço no pós-pandemia me pareceu impactada fortemente, como tantos outros, por um distúrbio de saúde mental. Foi o que eu concluí.
A Organização Mundial da Saúde (OMS), define saúde como sendo não apenas bem-estar físico ou ausência de doenças, mas também um estado de bem-estar físico, mental e social.
Pesquisa realizada pelo Todas Group[i], denominada O Raio X do Bem-estar no Trabalho das Mulheres Brasileiras, aponta existir fatores subjetivos que ganharam espaço importante na determinação do bem-estar e se referem a satisfação com o padrão de vida, as relações pessoais, a situação de trabalho e o estado de saúde.
“Com a mudança do contexto de trabalho durante a pandemia, as questões de saúde emocional ganharam espaço de discussão e apontaram para a necessidade das empresas aumentarem sua atenção ao tema. Além disso, o burnout oficialmente se tornou doença com CID a partir de janeiro de 2022. A doença foi classificada com o código Z73 e definida como problemas relacionados com a organização do modo de vida, e segundo a OMS, um fenômeno ligado ao trabalho, ou seja, um novo olhar para a forma como as pessoas têm reagido às questões do trabalho e novas propostas para melhorar o bem-estar dos funcionários ganham importância nas discussões corporativas” [ii].
A pesquisa aponta o Bem-estar geral das mulheres no Brasil em relação ao ambiente de organizacional, mas vale emprestar aqui, dentre os ricos resultados ali mencionados, o de que “somente metade das mulheres tiveram índices positivos em saúde mental e confiança e saúde física”. Veja os índices: “79% das mulheres sentem-se gratas pelo trabalho e 67% sentem-se seguras para dar sua opinião, porém quase 70% das mulheres se sentem preocupadas ou deprimidas em função do trabalho, 63% tensas frequentemente pela pressão, somente 45% tem confiança de que podem conquistar tudo que desejam no seu ambiente de trabalho, 51% conseguem equilibrar vida pessoal com profissional e 53% se comparam com outras pessoas no trabalho e isso as coloca para baixo”.
Neste interim, é pleonasmo dizer que a mulher tem sido cada vez mais demandada: pelo mercado de trabalho, pela sociedade e, por si mesma. O que já era um esforço, a que a maioria das mulheres já estão habituadas, é ainda mais relevante diante do Feminino enaltecido na frase “O Papel da Mulher para liderar e gerar transformações positivas” que estampa camisetas, podcasts e redes sociais.
Há uma real demanda externa, de uma sociedade reconhecendo, ainda que timidamente, que a Mulher ocupe os espaços de poder na política, nas empresas, nas entidades. É o sumo extrato conquistado arduamente através dos movimentos femininos, diga-se com erros e acertos, em favor da garantia dos direitos das mulheres, arvorando-se agora, para nosso regozijo.
Mas abraçar esta “oportunidade” é uma jornada por vezes exaustiva diante dos obstáculos que encontramos no caminho, alguns deles até mesmo dentro da nossa psique.
Sem adentrar aqui nas dificuldades que a mulher encontra para assumir o papel de líder, numa área específica ou da sua própria vida, a pergunta é: como estão nossos braços? E qual a relação dos “nossos braços” com a “nossa cabeça”?
Diante de um cenário global pós-pandêmico sedento por carinho e afeto, a liderança feminina nas mais diversas áreas requer em primeiro lugar, que a mulher, antes mesmo de assumir seu verdadeiro papel de Lider (social, empresária, associativa, politica), exercite o Autocuidado.
É preciso reconhecer que não temos “braço pra tudo” mesmo quando o único jeito para conquistar nosso tão desejado podium nos impõe muito sacrifício (físico e emocional). Entender o que nos move pra frente e o que nos paralisa, e o que tempo que perdemos dando significância para o que é dos outros que não tem aderência com nossos desejos é uma conta simples que nem sempre fecha. Mas é a matemática da saúde mental.
É salutar ter “cuidado” em como conduzir o Autocuidado. Doenças mentais estão sendo tratadas por Coaches de final de semana, e curas estão sendo prometidas com chás alucinógenos. Líderes precisam ter responsabilidade ao fazer escolhas.
O Autocuidado, em matéria de saúde mental é imprescindível para todos. Para as mulheres ainda mais, porque além de tudo que carregávamos antes, que já fazia cessar as forças nos braços, no pós-pandemia o peso dobrou. Dobraram as sacolas.
A nossa responsabilidade como Lideres, ao utilizar nossas competências e habilidades, perpassa pela conquista intelectual e de autocuidado sobretudo com a saúde mental, influenciar e interferir diretamente no estado mental das pessoas que nos rodeiam e reverberar num efeito bumerangue contribuindo para famílias, empresas ou entidades doentes ou sadias.
Manter a saúde emocional é ter senso de responsabilidade. Trata-se de acautelar o impacto do meu comportamento no cotidiano das empresas, na vida dos liderados, nos espaços de representação governamentais ou não. Onde não há autocuidado toda a sociedade padece assim como eu padeci, depois do que vi no caixa 5 do hipermercado, com o comportamento da “mulher sem braço”.
Talvez por isso a “mulher sem braço” era uma Mulher e não um Homem. Quanto peso será que ela teve de carregar que não suportou.
[i] TODAS Group – todasgroup.com.br / Raio X de BEM ESTAR
[ii] Cit. da Pesquisa. Das 673 mulheres, 478 trabalham atualmente no mundo corporativo e foram
foco de análise.
Data de Publicação: 08/08/2022
Autor: Lara Biezus